Promotor de Justiça Nilton Kasctin dos Santos falou sobre agrotóxicos

Nilton Kasctin dos Santos

Professor e Promotor de Justiça

         O Rio Grande envenenado

No ano de 2012 os agricultores brasileiros aplicaram nas lavouras mais de um milhão de toneladas de agrotóxicos. Refiro-me a veneno puro, ainda antes de ser misturado com água – depois dessa mistura, a quantidade pode aumentar dezenas e até centenas de vezes. Na última década, enquanto boa parte do mundo diminuiu consideravelmente o uso de veneno na produção de alimentos, a aplicação de agrotóxicos no Brasil cresceu cerca de 200%, colocando o País na posição de maior consumidor de veneno do planeta (há 8 anos consecutivos). Em relação a 2013/2014, já se sabe que essa estatística sombria cresceu de forma alarmante, tanto em quantidade como em qualidade, ou seja, além de serem aplicados mais, os venenos agora são mais tóxicos, porque as doenças, ervas daninhas e insetos se tornaram mais resistentes em razão de aplicações de veneno de forma errada por longo tempo.

         Enfim, somos uma imbatível potência mundial quando o assunto é veneno. No território que já foi bom para viver, onde já foi possível ter qualidade de vida, todos, querendo ou não, estamos comendo, bebendo e respirando agrotóxicos perigosos. Todos. Não escapa quem mora em Porto Alegre, Gramado ou Florianópolis, mesmo longe da nuvem de veneno que paira perene sobre as regiões da soja, da uva, da maçã, do arroz etc. Mesmo os fabricantes de agrotóxicos, há muito expulsos de países que se preocupam com a vida, não entendem como foi tão fácil fazer o Brasil prostrar-se sob o império absoluto dos venenos, transformando o antigo “pulmão do mundo” em palco para a festa triunfal da morte. Mas isso é natural que aconteça, pois a sociedade brasileira tornou-se incapaz de desenvolver um pensamento crítico, em razão da histórica fragilidade do sistema educacional. E que não me venham falar de solução pela “conscientização” da população e dos agricultores sobre o perigo dos agrotóxicos, pois uma nação que figura no 88º lugar no ranking mundial da educação é absolutamente incapaz de qualquer processo de transformação ontológica para melhor; tende só a piorar.

         A maioria esmagadora dos plantadores de soja, trigo, arroz, aveia, milho, feijão, uva, melancia, abacaxi, verduras e demais alimentos aplicam de forma ilegal os mais variados tipos de venenos perigosos. E o fazem quando querem, como querem e na quantidade que querem, sem serem incomodados por quem quer que seja no sentido de pelo menos cumprir a legislação pátria, que é extremamente permissiva e fraca.

         Eis apenas algumas das irregularidades mais comuns a que até já nos acostumamos:

a) estão aplicando agrotóxico de forma preventiva e às vezes desnecessária, o que é proibido por lei, pois desequilibra o meio ambiente, matando também os predadores (insetos e fungos bons) das pragas e doenças e tornando estas cada vez mais resistentes, o que leva ao aumento das doses e da toxicidade dos venenos;

b) e sem obediência aos termos da bula do veneno e do receituário agronômico, que especificam a hora da aplicação, a temperatura, a velocidade do vento, a umidade do ar, a dosagem, os intervalos de reentrada (de pessoas e animais na lavoura envenenada) e de segurança (período entre a última aplicação e a colheita), bem como a obrigatoriedade de sinalização (com bandeira vermelha) da lavoura envenenada;

c) estão aplicando veneno nas faixas de terra de domínio público que beiram as estradas. Só para lembrar, antes da construção de uma estrada federal ou estadual, o Poder Público desapropria uma faixa (de 40 a 50 metros de largura), pagando o preço de mercado ao proprietário. Só que, depois de pronta a estrada, o agricultor continua plantando nessa faixa de terra, que já não pertence a ele, mas é de toda a coletividade. Ora, isso até poderia ser admissível quando não se usava veneno na produção agrícola; agora não, pois não há plantação convencional sem várias aplicações de veneno perigoso e adubos químicos líquidos, que também são tóxicos. O risco que correm os motoristas que passam ao lado de uma lavoura envenenada (e sempre uma lavoura moderna está envenenada!) é preocupante, pois o ar com agrotóxico recolhido para o interior do veículo pode permanecer aí por vários minutos. E assim, num percurso longo na região da soja, principalmente, os ocupantes de um veículo que transita perto de lavouras recém envenenadas vão respirando um verdadeiro coquetel de venenos, já que cada agricultor costuma aplicar o tipo de agrotóxico que bem entende ou que acha mais eficaz.

         Em relação às estradas municipais, embora comumente não desapropriada uma faixa de terra para a construção da via, vale a mesma proibição legal no tocante à aplicação de agrotóxicos. Ou seja, se um agricultor aplicar dessecante, fungicida ou inseticida próximo ao leito da estrada, estará também cometendo o crime previsto no artigo 15 da Lei 7.802/89, cuja pena vai de 2 a 4 anos de reclusão. Mais grave ainda se torna a conduta se o agricultor dessecar a vegetação dos barrancos ou sarjetas da estrada, pois estará usando veneno para finalidade não-agrícola;

d) aplicam agrotóxicos próximo a residências, cidades, escolas, agrupamentos de animais (vacas de leite), rios e áreas de preservação permanente.

         Todas essas condutas já fazem parte da cultura dos gaúchos. Mas são absolutamente antiéticas e constituem crimes (artigo 15 da Lei Federal 7.802/89), cuja pena, repita-se, é de 2 a 4 anos de reclusão.

         E nem mencionei os crimes praticados por uma parte dos vendedores de veneno, agrônomos e técnicos agrícolas. Os comerciantes, porque não raramente armazenam agrotóxicos de forma ilegal e até vendem veneno sem receita; agrônomos e técnicos porque às vezes assinam receituários sem antes visitar a lavoura e fazer diagnóstico (obrigatório) com relatório circunstanciado. 

         O agrônomo e o técnico agrícola devem cumprir à risca o que fazem os médicos: consultados pelo agricultor, devem examinar a lavoura, como o médico examina o paciente. Depois, esse profissional é que deve decidir se há necessidade de veneno e de qual tipo. Mas isso normalmente não ocorre; o agricultor vai direto à “farmácia” (revenda), já decidido a comprar tal veneno, para aplicação da forma e no momento que bem entender. E às vezes quem entrega a receita já assinada é o balconista da loja de agrotóxico. Quem quiser duvidar, experimente comprar um agrotóxico numa revenda aí pelo Rio Grande afora. Logo, na maioria das vezes a receita agronômica é uma grande farsa. Cabe lembrar que os agrônomos ou técnicos agrícolas que participam dessa prática (receitar sem examinar a lavoura previamente) também cometem o crime do art. 15 da Lei 7.802/89, cuja pena vai de 2 a 4 anos de reclusão.

         Pois bem. Se no Brasil inteiro o panorama é de uma verdadeira tragédia, no Estado gaúcho é bem pior.

         Só para se ter uma ideia, o consumo médio nacional de agrotóxico por habitante gira em torno de 5 litros/ano. No RS, essa quantia sobe para cerca de 9 litros ano. Os gaúchos comem, bebem e respiram o dobro de veneno em relação ao restante do País. E assombre-se quem mora na região gaúcha da soja: estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) apontou que ultimamente o consumo de agrotóxico saltou para cerca de 33,2 litros por habitante/ano.

         Resumo da média de consumo de agrotóxicos per capita: no Brasil: 5 litros. No RS, 9 litros. Na região da soja do RS, 33 litros!!!

         E não é só. Não temos estatística recente, mas ninguém tem dúvida de que com o advento dos transgênicos a situação ficou ainda pior. Ocorre que a soja transgênica Roundup Ready, desenvolvida para tolerar a aplicação pós-emergente do herbicida glifosato (dessecante), ocasionou o aumento do limite máximo de resíduos do veneno no grão já colhido. Antes dessa soja, os resíduos permitidos do veneno eram de 0,2 ppm (partes por milhão). Por causa da soja transgênica, foi para 10 ppm (50 vezes mais!).

         O que deveria por si só causar indignação na sociedade brasileira é o fato de que, para justificar a liberação da transgenia, afirmava-se que seria uma tecnologia para inibir o uso de agrotóxicos. Mas não só aumentou a tolerância legal dos resíduos de veneno nos alimentos, como aumentou consideravelmente a quantidade de litros aplicados nas lavouras, pois agora a soja (resistente ao glifosato) não sofre dano mesmo recebendo mais aplicações e com doses mais altas do veneno. Pior: as plantas daninhas já adquiriram resistência a essas altas doses de glifosato, e os agricultores agora, além de estarem aplicando mais repetidamente, estão adicionando o glifosato a outros herbicidas extremamente tóxicos, como o Paraquat (Gramoxone), proibido no Rio Grande, e 2,4-D (que fez parte do coquetel mortífero denominado “agente laranja”, usado para dessecar as florestas na guerra do Vietnam.

         E não são poucos os agricultores que usam todas essas porcarias também para dessecar milho, trigo, aveia, arroz e feijão, objetivando apressar a maturação (o que é crime), fazendo com que esses venenos cheguem “in natura” nos moinhos e na mesa de todos nós.

         Para arrematar, agora estamos aí às voltas com a helicoverpa, a lagarta-monstro que come tudo de tudo (até saco plástico) e não morre com nenhum dos venenos já mortais registrados no Brasil. E tudo o que se ouve dos técnicos e políticos é o discurso uníssono que defende a decretação de estado de emergência fitossanitária no RS, para liberação da importação de um dos piores venenos do mundo (pior do que tudo o que existe no Brasil), à base de benzoato. Esse veneno (até agora proibido no Brasil) mata todo e qualquer inseto, microorganismo e outros (essenciais ao equilíbrio ambiental), inclusive os subterrâneos (como minhocas), pois penetra cerca de meio metro na terra.

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